Parte I – da filosofia (Locke)
A noção de substancialidade é definida, segundo Cabrera, como a essência de algo, uma noção que distingue o que a coisa é. Nesse sentido, este autor destaca que a substância seria o fundamento último de um objeto e, que, portanto, o separaria de outras coisas, que possuem estruturas diferentes.
Cabrera aponta Locke como o primeiro grande crítico moderno a tratar sobre esse conceito. O filósofo empirista teria ressaltado a dificuldade de se discutir a idéia difusa e abstrata de “substância”, ao afirmar que “tudo o que se pode fazer com uma noção sem sentido empírico é tentar explicar de onde ela pode ter se originado” (CABRERA, 2006, p. 160). O que existiria, então, seriam as idéias sobre a estrutura dos objetos.
A problemática da substancialidade se apresenta ainda mais interessante quando adaptada para seres humanos, pois se percebe que a autoconsciência, que falta nas coisas imateriais, está presente nos homens. Sobre isso, Locke diz que os critérios de identidade pessoal seriam definidos pela consciência que um indivíduo tem de si. “O constante nos seres humanos não é nenhuma ´substância`, mas somente uma operação, a operação de reconhecer a si mesmo na autoconsciência de seus próprios atos” (CABRERA, 2006, p. 161).
Parte II – do cinema (Batman)
O cinema também tratou da questão da identidade pessoal, ainda sobre a lógica da substancialidade em relação aos humanos, ao contar histórias de pessoas que se transformam em vampiros, lobos, moscas etc. Nesse sentido, uma pergunta pode ser feita a partir da ocorrência desses acontecimentos: “essas pessoas que se transformam continuam sendo as mesmas depois de suas transformações?” (CABRERA, p. 162).
Se tentássemos responder essa indagação levando-se em consideração os filmes de Batman, poderíamos chegar à conclusão de que Bruce Wayne e Batman são a mesma pessoa, visto que o Bruce não sofre nenhuma mutação em seu corpo, apenas veste uma roupa e um cinto (que possui tudo que você pensar) para se transformar no “Cavaleiro das Trevas”. Assim, as mutações que Bruce sofre são puramente externas – “não afetam a corporalidade de Wayne, mas somente sua atuação e seu comportamento” (CABRERA, p. 163).
Todavia, essa questão é muito mais complexa, pois o simples fato de Bruce modificar seu comportamento e personalidade, quando transformado em Batman, já seria um indício de que ele é outra pessoa, uma vez que ele se torna irreconhecível para os outros. Ou seja, Bruce deixa de ser um playboy e se comporta “como um herói, que maneja armas ultramodernas, torna-se valente, intrépido, violento e vingativo em seu ódio ao crime na cidade de Gotham. Nesse sentido, poderíamos dizer que ele deixa literalmente de ser Bruce Wayne, relativamente independente da vestimenta que usa” (CABRERA, 2006, p. 163).
Esse critério de reconhecimento por parte dos outros, porém, não é o mesmo proposto por Locke, que defende a autoconsciência como critério definidor da identidade pessoal. Ou seja, para esse filósofo, quando Wayne se transforma em Batman ele tem plena consciência disso e, depois de ter agido como Batman, ele se lembra de ter feito isso. “É a memória autoconsciente que constitui, segundo Locke, a identidade de uma pessoa, o fato de que ela pode reconhecer como seus os atos quer realiza” (CABRERA, p. 164).
Uma última questão, contudo, surge dessa afirmação: o que aconteceria se algumas pessoas encontrassem Batman deitado na rua, após ter sido atingido por um gás alucinante que o fizesse perder a memória e o impedisse de se auto reconhecer? Nesse caso, não poderíamos afirmar com certeza quem essa pessoa é, pois apesar de identificarmos suas vestimentas e seu corpo, esse Batman poderia ser simplesmente um doido vestido de Batman que caiu na rua.
Esse argumento do “louco-no-disfarce” poderia ser utilizado até por Bruce Wayne, caso sua identidade fosse revelada durante sua inconsciência, que poderia preservá-la dizendo que ele gosta de se disfarçar de Batman de vez em quando, mas não é realmente Batman. Sendo assim, Locke parece estar certo quando diz que o verdadeiro critério da identidade é algo que não pode ser socialmente reconhecido, mas apenas conhecido íntima e pessoalmente (a autoconsciência) – e é isso que permite que Bruce mantenha sua identidade dupla.
O cinema, por fim, parece não questionar a filosofia no que diz respeito à identidade pessoal. O filme mais recente de Batman, por exemplo, apresenta várias pessoas que tentam imitar Batman (de certa forma, elas possuem parte da “substância”, das características, de Batman – herói, valente, justiceiro, inteligente, enigmático etc), mas não são ele, de fato, pois a possibilidade de dizer eu sou, segundo Cabrera, não depende somente da posse de um grupo de características inconscientes de si mesmas, mas de um critério mais “psicológico”, de um certo processo mental.
Referências
CABRERA, Julio. O Cinema Pensa: uma introdução à fiilosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.