sábado, 6 de março de 2010

“Guerra e Cinema: logística da percepção”



As marcas da Segunda Guerra Mundial deixadas na infância de Paul Virilio, que presenciou a ocupação nazista em Paris e os bombardeios dos aliados em Nantes, talvez estejam relacionadas com seu interesse em estudar o fenômeno da guerra. Qualquer que tenha sido sua motivação, o fato é que a análise da “logística da percepção militar” presente em “Guerra e cinema” é oportuna numa época em que guerras e atentados terroristas são transformados em espetáculos.

A partir de uma abordagem que define a história das batalhas como a história da metamorfose de seus campos de percepção, o autor constrói a tese de que a “guerra não pode jamais ser separada do espetáculo mágico” (p. 24). No primeiro capítulo do livro, Paul Virilio afirma que as técnicas de representação, da cartografia até a fotografia e a cinematografia, foram sistematicamente empregadas nos conflitos do século XX não só como forma de propaganda às populações civis, mas também na preparação de táticas e estratégias pelos combatentes. É sob essas duas perspectivas, aliás, que o autor estrutura seu livro, ora apresentando argumentos que identificam o cinema como propaganda, ora mostrando os benefícios trazidos pela técnica cinematográfica à tecnologia militar (ou vice-versa).

Como exemplo da utilização do cinema como instrumento de propaganda, no capítulo “o cinema Fern Adra” o filósofo francês afirma que não foi por acaso que os filmes de guerra multiplicaram-se durante a II Guerra. No momento em que os dois lados do conflito buscavam mobilizar as massas, EUA e Alemanha encontraram no cinema o aparelho que procuravam. Em Hollywood, a produção cinematográfica, quando não era financiada pelo Pentágono, era acompanhada atentamente pelo Alto Comando militar, resultando em películas como Why we fight (Por que nós combatemos), de 1942. Do lado nazista, o financiamento do governo permitiu que a indústria cinematográfica alemã se igualasse, em termos técnicos, à Hollywood – produzindo grandes épicos como Die goldene Stadt (A cidade dourada), 1942.

Ainda quanto ao uso do cinema como forma de propaganda às populações civis, Paul Virilio afirma que foi após o término do primeiro conflito mundial que se criou a necessidade de se impor às massas “cultos de substituição”, na medida em que a partir da Grande Guerra as antigas relações entre religião e Estados militar-industriais chegaram ao fim. Nesse sentido, os Estados que haviam se constituído por meio de violência aberta contavam naquele momento com poucos meios de persuasão, e o cinema logo foi nacionalizado, a exemplo do que ocorreu na União Soviética com Lênin, na tentativa de criar uma unidade nacional.

No segundo capítulo (“o cinema não é eu vejo, mas eu voo”) e no terceiro, intitulado “vós que entrais no inferno da imagem perdei toda esperança”, Virilio continua sua análise dos impactos da Primeira Guerra Mundial sobre a evolução das técnicas cinematográficas e militares. Ele afirma que é nesse momento que se inicia a “heroicização cinemática”, isto é, os soldados passam a ser eternizados no cinema como heróis nacionais; e que uma grande revolução nos campos de batalha se desenrola: a imagem se prepara para triunfar sobre o objeto, o tempo sobre o espaço, em uma guerra na qual a representação dos acontecimentos dominará a apresentação dos fatos.

Trata-se, afinal, da “logística da percepção militar” a qual Virilio se refere. Uma forma de compreender o mundo da guerra a partir do casamento entre arma e olho, órgão de percepção que, a partir da Primeira Guerra, passou a ser representado no âmbito militar pela aviação, encarregada de reconhecer os movimentos dos inimigos nos fronts. Mas os olhos serão, sobretudo, os olhos das objetivas das primeiras câmeras de bordo. “A realidade da paisagem de guerra torna-se cinemática, porque tudo muda, tudo se transforma, [...] tornando inúteis os mapas do Estado-Maior e os antigos levantamentos topográficos” (p. 169).

O advento da Segunda Guerra Mundial tornaria essa logística ainda mais transparente. A Blitzkrieg, a batalha do Marne (em 1940), a extrema mobilidade dos exércitos, toda essa “nova unidade de tempo dos conflitos” contribuiu para a percepção de que apenas o fotograma do filme de guerra permitiria a compreensão do campo de batalha. Assim, mais uma vez as Forças Armadas buscaram aperfeiçoar as pesquisas no campo visual, na tentativa de apreender a nova dinâmica de guerra.

A velocidade percebida nos enfrentamentos da Segunda Guerra relaciona-se com aquilo que o autor denominou dromologia. Uma perspectiva que implica o declínio das táticas de guerra, do poder-mover, e o prestígio dos movimentos de combate (daí o emprego do termo em grego, dromos, que sugere uma corrida), do poder-comover. A dromoscopia, enfim, representa a derrota do tempo de reflexão para a velocidade dos sentidos: “[...] agora se trata menos de compreender do que ver” (p. 81).

Desenvolvendo esse conceito em forma de crítica à sociedade atual, nos capítulos finais, o autor denuncia a negação do caráter humano na guerra; não no sentido moral, mas no sentido técnico, de que os soldados (em sentido amplo) renunciam sistematicamente, e deliberativamente, à imagem ocular em favor da mira ótica. Trata-se do que Virilio chamou de fé numa “visão sem olhar”.

Da mesma forma, o autor atenta para a expansão do campo de percepção dos conflitos. O combate é substituído por simuladores que, cada vez mais, se assemelham a um cinema permanente. O real se confunde com o virtual; o ver com o prever. Enfim, são vários os exemplos dados pelo filósofo que apontam para a eliminação do elemento humano na guerra, e para a transformação desta num filme, num espetáculo.

“Guerra e cinema” não é um livro preocupado em examinar o conteúdo de filmes de guerra. Não obstante as referências a produções cinematográficas presentes em toda a obra, o autor está muito mais interessado em mostrar a linha tênue que separa a evolução das técnicas cinematográficas das militares. Partindo de um ponto comum aos dois campos, a criação do projetor de luz em 1904, Paul Virilio constrói sua tese de que a guerra depende de representações e afirma, inclusive, que “a guerra vem do cinema, e o cinema é a guerra” (p. 61).

O filósofo francês faz uma análise inovadora e angustiante, revelando aspectos que relacionam a indústria cultural à indústria militar. A leitura requer certa concentração, em decorrência das idas e vindas do autor pela história, mas é proveitosa e pertinente numa era marcada pelo apego à tecnicidade. Como nos lembra Virilio, “[...] ainda ontem, morria-se por um brasão, uma imagem inscrita em um estandarte ou uma bandeira, mas agora morre-se para aperfeiçoar a nitidez de um filme, a guerra torna-se, enfim, a terceira dimensão do cinema...” (p. 194).

Referências
VIRILIO, Paul (2005). Guerra e cinema: logística da percepção. São Paulo: Boitempo, 208 p., ISBN 85-7559-076-6.

Um comentário:

Enzo Mayer Tessarolo disse...

também disponível no site do Instituto Política Global: http://www.politicaglobal.com/politicaglobal/Enzo/Enzo.html