segunda-feira, 15 de março de 2010

Reformas da Administração Pública Brasileira: avanços e retrocessos (II)


Para os meus quatro leitores, em especial para os companheiros do meu grupo de estudo que com certeza estavam ansiosos pela continuação do artigo, seguem abaixo as considerações sobre as reformas implantadas no período democrático. Se vocês ficarem um pouco perdidos no início, sugiro que leiam o post anterior, já que ele é a primeira parte deste artigo.

O quadro político-institucional da máquina estatal no governo Sarney ficou marcado por um anacronismo, uma defasagem entre a sociedade democrática e o Estado. O desafio era reverter esse cenário, transformando o aparelho administrativo em ente reduzido e eficiente, receptivo às demandas societárias.

Em função do contexto político-econômico do final da década de 80, entretanto poucas mudanças ocorreram na Administração Pública. Entre as destacáveis, está a intenção de valorizar a função pública com a criação de escolas e centros de aperfeiçoamento, como a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e a Fundação Centro de Formação do Servidor Público (Funcep); e o objetivo de se promover a avaliação do desempenho do servidor, instituindo um novo plano de carreira.

Enquanto o governo Sarney tentava reformar o aparelho estatal brasileiro, na Assembleia Nacional Constituinte buscava-se formular uma nova Constituição, preocupada com a ordem social, a cidadania, a organização do Estado republicano, as formas de participação coletiva e o financiamento do gasto público, dando direção e fundamento à Administração Pública. De fato, a Constituição de 1988 representou uma verdadeira reforma do Estado, como afirma Frederico Lustosa da Costa (2008).

Não obstante os avanços alcançados pela nova Constituição e pela gestão de Sarney (acompanhados de retrocessos como a adoção de um regime jurídico único a todos os servidores públicos, que transformou milhares de empregados celetistas em estatutários, provocando um problema previdenciário ainda hoje não resolvido), o desafio de tornar eficiente o aparelho estatal não foi alcançado durante a década de 80; e nem no governo Collor, que promoveu a desestatização de maneira irresponsável e extinguiu desnecessariamente vagas no serviço público.

É o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado elaborado na gestão de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, que inaugura um novo modelo de funcionamento do Estado, conhecido como “administração gerencial” (em 1998, as emendas 19 e 20 impulsionariam as medidas dessa reforma, ao modificar o equivocado Regime Jurídico Único, introduzir o princípio da eficiência no direito administrativo e instituir o Plano Plurianual). Preocupado em superar de vez os traços patrimonialistas entalhados na Administração brasileira, esse Plano promoveu a distinção entre as atribuições primordiais do Estado com o objetivo de focalizar a atuação estatal nas funções de formulação e avaliação de diretrizes de política pública.

A justificativa para tal separação de funções é explicada por Marcelino. Segundo o autor, a administração indireta ficaria encarregada de executar as atividades estabelecidas pela administração direta, pois “a implementação de políticas exige agilidade e flexibilidade por parte das instituições que vão realizá-las, diferentemente da função de formulação” (MARCELINO, 2003, p. 651).

O governo FHC, influenciado pelo pensamento de Bresser Pereira, também buscou modificar o eixo histórico do funcionamento do Estado: desde 1930, a ênfase das reformas estava nos meios (orientada para processos, métodos); agora, a essência da proposta era nos resultados (a satisfação das necessidades dos cidadãos).

Houve um verdadeiro “choque cultural”, na interpretação de Fernando Abrucio (2007), que influenciou a atuação dos gestores públicos e contribuiu para inovações governamentais e mudanças institucionais nos últimos dez anos. Dentre os fatores positivos dessa reforma podemos destacar, então, as medidas de restrição orçamentária, como a imposição de tetos para o gasto com o funcionalismo, e de otimização das políticas, por meio da introdução do princípio da eficiência como base do direito administrativo.

Quanto às críticas feitas ao plano reformista da gestão FHC, sabe-se que elas concernem ao predomínio dos fatores econômicos na lógica de seu governo, o que teria tolhido o avanço da autonomia de entidades da administração indireta pelo medo de perder o controle sobre os gastos públicos. Além disso, segundo Abrucio (2007), os parlamentares temiam a implantação de um modelo administrativo mais transparente e voltado ao desempenho, pois isso diminuiria a capacidade de a classe política influenciar a gestão dos órgãos públicos, pela via da manipulação de cargos e verbas.

Convém ressaltar que o contexto histórico-político da década de 90 era muito mais complexo para a elaboração de uma reforma no aparelho de Estado do que aquele da reforma getulista e do Decreto-Lei nº 200. Afinal, não estávamos mais numa ditadura, mas numa democracia. Ou seja, o processo decisório não era mais centralizado, advinha de negociações e debates – um contexto muito mais suscetível a empecilhos ao plano reformista.

Conquanto a gestão FHC tenha promovido uma importante reorganização administrativa, persistiram ainda os traços patrimonialistas na cultura política brasileira; e o chamado modelo weberiano, baseado na meritocracia, não foi extinto, e sim aperfeiçoado. Um número importante de concursos foi realizado e a capacitação feita pela Enap, revitalizada.

A ampla reforma da gestão pública, contudo fracassou ainda no início do segundo mandato de Fernando Henrique, em função do problema estrutural citado e de alguns erros estratégicos ocorridos no momento de definir quais eram as funções estratégicas do Estado, que ficaram restritas aos cargos ligados basicamente à diplomacia, às finanças públicas, à área jurídica e à carreira de gestores governamentais (da qual pretendo fazer parte).

A gestão de Lula, por sua vez, tem se caracterizado pela continuação de várias iniciativas exitosas da experiência modernizante do governo FHC, pela ênfase dada ao campo do planejamento e das políticas públicas, e (ironicamente, dada a crise política de 2005) pelo aperfeiçoamento de alguns mecanismos de controle de corrupção.

Inspirado pela ascensão da democracia participativa no Brasil, a atual administração buscou reforçar os meios de comunicação entre população e governo, e entre União e entes federados. Ampliaram-se, nesse sentido, as discussões sobre o Plano Plurianual e criaram-se o Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito Federal (Pnage) e o Programa de Modernização do Controle Externo dos Estados e Municípios Brasileiros (Promoex), ambos responsáveis por modernizar a administração pública em âmbito subnacional, em especial a nível estadual.

Ainda que o governo FHC também tivesse criado um programa de auxílio aos estados, o caráter dele estava relacionado à área financeira. O Pnage e o Promoex, por outro lado, tratam de uma temática mais ampla: a da gestão pública. A preocupação com os gastos estatais deixou de ser o fio condutor do processo de reforma; agora, o objetivo maior é reconstruir a administração pública em suas variáveis vinculadas ao planejamento, aos recursos humanos, à sua interconexão com as políticas públicas e ao atendimento dos cidadãos (ABRUCIO, 2007).

No que diz respeito aos resultados alcançados pelo Pnage/Promoex, Fernando Abrucio afirma que seu maior avanço deles foi construir tais programas por meio de ampla participação e discussão com os estados e tribunais de contas. “Este modelo intergovernamental e interinstitucional é mais participativo e funciona mais em rede do que de forma piramidal. Sua concepção é a mais adequada para implementar ações administrativas numa federação, em nítido contraste com a (nefasta) tradição centralizadora do Estado brasileiro” (ABRUCIO, p. 12, 2007).

Não se pode falar, contudo que a presidência Lula promoveu uma reforma da gestão pública. Assim como os governos (democráticos e autoritários) anteriores, o atual foi incapaz de estabelecer uma agenda reformista – ainda que tenha insistido no aumento da efetividade das políticas públicas (particularmente sociais) sem prejuízo fiscal. O Brasil ainda carece de uma visão integrada e de longo prazo para a gestão pública.

Um ponto negativo do modelo administrativo do governo Lula foi o amplo loteamento dos cargos públicos, com indicações para cargos no Executivo para promover acomodações políticas. Mesmo que essa prática não tenha sido inventada pela gestão petista, sua amplitude e vinculação com a corrupção surpreenderam negativamente devido ao histórico de luta republicana do Partido dos Trabalhadores.

É difícil (e talvez até errado) ver o lado bom de escândalos de corrupção, mas “se houve algo positivo na crise política de 2005 é que, depois do conhecimento pelo grande público do patrimonialismo presente em vários órgãos da administração direta e em estatais, tornou-se mais premente o tema da profissionalização da burocracia brasileira” (ABRUCIO, p. 77, 2007) e as ações contra a corrupção aumentaram.

Após os escândalos, avançaram os trabalhos da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União no que diz respeito ao combate à corrupção no país. E reforçou-se a profissionalização de carreiras estratégicas do governo: uma condição sine qua non para o bom desempenho de políticas públicas.

Uma avaliação maior do funcionamento do Estado brasileiro não caberia nestas breves páginas. Por isso, à guisa de conclusão, percebe-se que ainda sofremos com os traços históricos negativos da administração pública brasileira: o patrimonialismo, o clientelismo e a corrupção. Para conter esses impulsos calamitosos ao interesse público, um planejamento de longo prazo baseado na profissionalização do servidor público, na eficiência do direito administrativo, na efetividade e na transparência das políticas públicas é necessário. Assim, o Brasil poderá se tornar um país sério.


Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz. Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública, v 1, p.77-86, 2007.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n.5, p 829 - 874, 2008.

MARCELINO, Gileno Fernandes. Em busca da flexibilidade do Estado: o desafio das reformas planejadas no Brasil. Revista da Administração Pública, v. 37, n. 3, p 641-659, 2003.

MARE. (Ministério da Administração e Reforma do Estado). Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, Imprensa Oficial, 1995.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Braziliense, 1979.

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